Quem não acredita que Deus é pelos inocentes, é porque nunca inventou de fazer um documentário fotográfico na entrada de uma boca de fumo – sem saber que era uma boca de fumo, é claro. E também nunca fotografou o cacique do lugar ¬¬
Tava lembrando da falta de noção do perigo que a gente tem em muitas ocasiões e isso me lembrou a minha falta de noção do perigo e de senso geográfico há uns cinco ou seis anos.
Segundo semestre de jornalismo da faculdade, recebemos – e eu a minha dupla dinâmica – a incumbência de fazer um fotodocumentário sobre catadores de lixo em Salvador.
Como todo bom universitário, sqn, deixamos para fazer o serviço na última hora, na véspera da entrega da primeira versão do negócio. Atravessamos a rua com uma câmera na mão e fomos fazer fotos. Como era de se prever, o nosso maravilhoso trabalho não valeria meio ponto no dia seguinte.
E o dia que eu conheci o ‘bonitão’ começou mais ou menos assim:
– Moço, onde você entrega essas latinhas que você pega aqui na praia?
– Na Gamboa…
– Hummm, na Gamboa…
– É
– Valeu, moço!
E fomos nós para a Gamboa. A de Baixo, não a de Cima. E aí começa a nossa aventura. Marcamos o encontro no Elevador Lacerda, porque a gente sabia que a Gamboa era por ali, mas não sabia exatamente onde. E fomos subindo, final da manhã, um sol de rachar, um calor do inferno.
– Ô, amigo, bom dia, onde é a Gamboa?
– Subindo aí.
Mais uns metros:
– Moço, bom dia, onde é a Gamboa?
– Subindo…
Mais outros metros:
– Amigo, com licença, onde é a Gamboa?
– A de cima ou a de baixo?
– Hum, é onde os catadores entregam material.
O homem olha estranho pra gente, meio pensando que estava na frente de duas loucas:
– A de baixo. É depois do MAM, olhe, cuidado, viu?
– Valeu!
Mais uns outros bons metros e dois policiais parados na porta do MAM. Nós duas suando as bicas:
– Gente, bom dia, com licença. Onde é a Gamboa?
– A de cima ou a de baixo?
– A de baixo.
Os policiais olham pra gente de cima a baixo:
– Vocês já foram lá?
– Não.
– E vocês têm certeza que vocês vão?
– Err… temos 😀
– Então entrem aí no primeiro buraco que vocês acharem no muro, mas NÃO desçam.
– … Beleza, massa. Valeu, gente!
Ah, a inocência… Vem descendo um cara sem camisa, boina na cabeça, piercing de libélula usado como brinco na orelha esquerda, empurrando um carrinho de mão cheio de garrafas pet.
– Ei, moço! Bomdiacomlicençatudobem?
– Oi, lindas! Digam aí.
Explicamos a nossa ladainha inteira, somosestudantesdejornalismoestamosfazendoumfotodocumentáriosobrecatadoresdelixoeagentequeriaconversar, pode ser?
– Pooooode, linda! Olhe, meu nome é Jurandir, eu cato lata lá na praia, na Barra e trago pra cá todo dia, 20 horas de trabalho, peso, calor, pouco dinheiro. Onde eu eu moro? Lá em Cajazeiras, minha filha, loooooonge…
Jurandir contou a ladainha dele toda e o nosso papo, que era a três, foi ganhando corpo. Apareceu Geraldo de um canto, um rapaz que mal ficou por lá e não lembro o nome de outro.
E aí apareceu o bonitão:
– Digaí, o que é que tá pegando?
– Não, véi, as meninas tão fazendo um trabalho de faculdade sobre catador de lixo e tá tirando umas fotos aqui da gente com o material! A gente vai sair na foto, véi!!
Bonitão me olhou com cara de muitos amigos – quase todos barra pesada – mas com jeito de quem tinha ido com a minha cara. Para falar a verdade, eu até fui com a cara do bonitão também. Num surto de sanidade, antes de apontar a câmera para bonitão, perguntei se podia fazer uma foto dele virada pro mar. E ele:
– Pode tirar, mas não mostre minha cara, não, porque a gente só aparece no jornal quando acontece desgraça.
Tirei a foto das mãos de Bonitão. Achei pouco e ainda perguntei o nome. E ele respondeu, com um sorriso de orelha a orelha:
– Pode me chamar de bonitão, princesa!
gargalhadas gerais debaixo do sol de meio dia na Gamboa de Baixo, vista pra Baía de Todos-os-santos. Foi esse dia que eu virei a primeira-dama da Gamboa!
As outras imagens do fotodocumentário ‘Lixo Nosso de Cada Dia’ ficam aqui.